quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Fore-Edge Book Paintings - Imagens em segredo, as pinturas escondidas atrás de ouro! - Parte I

                             
   Pintar o corte da frente (oposto à lombada) das páginas dos livros (também chamado de goteira) é uma arte que data possivelmente do séc.10 na Europa, mas foi em meados do séc.17 que os ingleses começaram a desenvolvê-la, levando-a ao apogeu no séc.18 e início do 19, sob a égide dos famosos editores, livreiros e encadernadores "Edwards de Halifax".
  Em seus primórdios consistia basicamente na marcação do título da obra diretamente sobre o corte do livro fechado permanecendo visível sempre que o livro estivesse nessa posição. Eram tempos medievais, em que os livros, grandes demais, tinham que ser arquivados deitados, com o corte virado para fora. 
   Posteriormente, quando as folhas de pergaminho foram sendo substituídas por papel possibilitando reduzir-se o tamanho e o formato dos livros e arquivá-los verticalmente, a marcação do título passou a ser feita na lombada cedendo o lugar nas bordas para monogramas, símbolos heráldicos ou retratos que identificavam os proprietários. Faz parte do acervo do Museu Britânico um Novo Testamento impresso na Antuérpia em 1534 que Anna Bolena carregou ao cadafalso e em cujo corte ela própria marcou com tinta vermelha " Anna Regina Angliae ".
  Porém, gradativamente, ao descobrir-se que se as pinturas fossem feitas ligeiramente mais para dentro das bordas e depois estas fossem submetidas à douração ou marmorização, elas permaneceriam ocultas revelando-se apenas quando o bloco de páginas do livro fosse inclinado, num efeito ilusório de aparece-desaparece, pinturas elaboradas de motivos florais, paisagens, cenas esportivas, religiosas ou eróticas passaram a fazer parte da decoração dos volumes embelezando e enriquecendo a encadernação.
    Esses desenhos podiam ilustrar uma cena do livro, apenas estar relacionados com o assunto do livro ou não necessariamente, sendo aplicados em bíblias, livros de orações, de poesias ou clássicos.
    As pinturas raramente eram assinadas e na maior parte dos casos tudo o que se sabe é que determinados artistas trabalharam para este ou aquele encadernador em particular. Entre os poucos artistas que se identificaram está Miss C. B. Currie, que trabalhou para os encadernadores "Riviere and Son", em Londres,  no final do séc.19 e começo do séc. 20. Alguns exemplares de sua obra podem ser encontrados em Harvard, The Huntington Library, Clark University Library, no  Art Institute de Chicago e em coleções particulares.
    O que torna possível estimar a época em que foram pintadas é a identificação do encadernador do livro, o estado geral da encadernação, a intensidade das cores das pinturas e características dos pigmentos, o motivo ou tema das imagens, o ano de edição do livro (embora muitas vezes a decoração seja aplicada vários anos após o exemplar ter sido editado), o ano em que a obra foi escrita, etc.

                                                                        Técnica

    Para que as pinturas sejam realizadas, o bloco de páginas (ou miolo) já deverá ter sido perfeitamente refilado e o livro estar encadernado. A seguir, com apenas uma das capas aberta e o livro apoiado horizontalmente na outra e com o bloco de folhas mantido numa posição chanfrada (ou oblíqua) da 1ª página de cima até a última, se formará um painel no corte no qual será pintada a imagem.


Martin Frost
 
    Pode ser feito previamente um leve esboço à lápis do desenho que será pintado. A tinta utilizada é a aquarela em pastilhas e o pincel (fino) deve aplicar as tintas tão seco quanto possível e em pinceladas perpendiculares às páginas ( a aquarela em tubos tem consistência líquida demais para essa técnica).          
    Somente após a secagem completa da pintura poderá ser feita a douração dos cortes do bloco, que manterá a pintura completamente velada e protegida. Se a douração não fôr feita adequadamente as pinturas aparecerão através do dourado mesmo quando o livro estiver fechado:

                                       (Figuier, Louis. Les Races Humanes . Paris: Librairie Hachette et cie, 1872.)
                                                                    (From the George M. & Frances L. Gill Collection)

    A ilustração pode ser horizontal ou vertical, frontal (fore-edge), dupla (two-way double), dupla dividida (split double), em todos os cortes (all-edge) ou panorâmica (panoramic).
                                                           
  Swift, Jonathan. Gulliver's Travels: Into Several Remote Regions of theWorld. London and NewYork: George Routledge and Sons, 1885. (From the George M. & Alice Gill Collection)                                             
                                                                                        
    Frontal, quando a pintura é feita na borda frontal do bloco de páginas (goteira)  flexionado apenas para um lado (em geral o direito):

 
                                                                       [Diana With a Handmaid.] Boston Public Library
                                                                                                              
    ["The Last Supper," after Leonardo Da Vinci.] Boston Public Library 

                                       [Edward VI with Lady Jane Gray.] Boston Public Library
 
    
                                          [Carrick Castle in Argyll, Scotland.]Boston Public Library

                          ["The Cries of London": Peas, Strawberries, Cherries.] Boston Public Library
                            
    Dupla, quando pinturas são aplicadas em ambos os lados do corte frontal (goteira). Nesse caso, se flexionarmos as bordas das páginas para o lado direito aparecerá uma imagem e se fizermos isso para o lado esquerdo aparecerá outra imagem:

                                                    

           Pintura dupla da goteira revelando de um lado Ross Castle e do outro Old Weir Bridge em Killarney, Irlanda(Moore, Thomas. Lalla Rookh: An Oriental Romance . London : Longman, Rees, Orme, Brown, and Green, 1826.) (From the George M. & Frances L. Gill Collection)  
                             
    Por requerer muito maior habilidade do pintor (em não permitir que as tintas da 1ª pintura manchem a 2ª  e vice-versa), muito mais tempo na realização e consequentemente um custo muito maior, a dupla pintura do corte é mais rara do que a simples (ou única).  Menos de 7% das pinturas existentes em coleções privadas ou acervos públicos são de pinturas duplas.

  Dupla dividida, quando o livro é grosso o suficiente e o bloco é dividido no meio e pintado separadamente:


                                                                        Martin Frost        
    Neste caso cada metade ainda pode ser pintada em ambos os sentidos de inclinação das bordas das páginas obtendo-se então 4 imagens ao todo.

     Em todas as bordas (ou cortes), quando a borda de cima, a debaixo e a frontal são decoradas:
                                        
              
                                                       

                                                                                    
       Panorâmica, quando a borda de cima, a debaixo e a goteira recebem uma pintura contínua que envolve o livro num efeito surround:

                                                                                                
    Ainda no séc.19 a arte alcançou a América, onde floresceram alguns artistas cujas obras estão em coleções particulares, bibliotecas ou museus, mas a produção ali não chegou a ser significativa. A maior parte dos livros com bordas decoradas encontrados nos Estados Unidos, embora retratem cenas de cidades como Boston, Filadélfia ou Nova Iorque, foram pintados na Inglaterra por artistas ingleses ansiosos por conquistar a clientela abastada americana.
    Mas a decoração das bordas de livros é praticada até os dias de hoje tanto na América como na Europa e até na Ásia por habilidosos pintores tais como o britânico Martin Frost, o mais conhecido e ativo artista contemporâneo, que tem decorado milhares de livros ao longo dos últimos 40 anos.

                                                                        Martin Frost
     Além do trabalho artístico Frost também dá palestras e workshops em outros países.
     Existem várias coleções importantes de livros decorados com essa técnica pelo mundo, mas dentre elas a da Biblioteca Pública de Boston é uma das melhores dos EUA com um acervo de 258 livros doados em 1951.

   Bibliografia: "A Thousand and One Fore-Edge Paintings, With Notes on the Artists, Bookbinders, Publishers and other Men and Women connected with the History of a Curious Art" -  Carl J. Weber, disponível para leitura em:
http://posner.library.cmu.edu/Posner/books/pages.cgi?call=751.7_W37&layout=vol0/part0/copy0&file=0010

Créditos:
Fotos 1, 2, 4, 11, 13, 14, 15, 16, 17 e 18 - Martin Frost

Fotos 3, 5 e 12 - Marist College, Archives and Special Collections: http://library.marist.edu/archives/gill/technique.html

Fotos 6, 7, 8, 9 e 10 - Boston Public Library.
             

2 comentários:

  1. Vera, que coisa maravilhosa! Não conhecia este tipo de pintura nas bordas dos livros, e além de tudo, encobertas com ouro. Que trabalho de arte magnífico, tão delicado e oculto, como um bordado que pouco será notado por olhos apressados. Quanta sutileza e qualidade, bom gosto e apuro técnico. Realmente temos que aprender a ver, além do primeiro olhar, além da aparência exterior, verificando as possibilidades, muitas vezes ocultas por trás de um dourado brilho ofuscante! Obrigada pala aula magistral. Continuo aprendendo com voce!

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  2. Impressionante esse trabalho. Um prato cheio para os adeptos às teorias de conspirações. Uma forma de guardar ou passar segredos através dessas pinturas "sub aurus"
    Lindo trabalho de pesquisa, parabéns.

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